Resenha do documentário 20 Dias em Mariupol (2023, Mstyslav Chernov)

Pesado e de uma dor inestimável, dilacerante até a alma. Impossível não se impressionar com o documentário “20 Dias em Mariupol” (‘20 Days in Mariupol’) por tamanha ignorância do bicho homem e suas mazelas perante ao seu semelhante fazendo-nos parecer meros seres desalmados, tão estúpidas são tais atitudes como a de guerrear pelo domínio à força da terra alheia e, acima de tudo, pela obtenção do poder, enraizado no egoísmo e alimentado pelo ódio, ato capaz de transformar seres humanos em pobres criaturas desumanas.


Assistir ao documentário em longa-metragem “20 Dias em Mariupol” (2023) nos dá a impressão mínima da destruição provocada pela guerra, nela nada se salva até que um dos lados, enfim, levante a bandeira branca da paz ou acabe dizimado em nome da pátria; ou quem sabe, sabiamente, sob armistício se inicia o diálogo entre as partes hostis que ao final resulte em um tratado de paz. Até que as partes envolvidas resolvam baixar as armas para um possível cessar-fogo ou acordo, muitos soldados e civis farão parte das estatísticas de mortes e vidas traumatizadas pela guerra.

O documentário nos relata imagens assustadoras do terror provocado pela invasão da Ucrânia pela Rússia até a tomada estratégica da importante cidade de Mariupol, localizada na costa norte do Mar de Azov, onde está instalado o segundo maior porto da Ucrânia (Odessa é o maior do país). Através da corajosa missão jornalística liderada pelo fotógrafo ucraniano Evgeniy Maloletka, ele e sua equipe encontram-se presos na cidade sitiada com o propósito de registrar o máximo de fotos e principalmente filmagens do dia a dia daquela triste realidade, tudo isso com a finalidade de disseminar para os meios de comunicação as mazelas da guerra, uma máquina cruel e incessante de dissipar vidas.

Bandeira da Ucrânia tremulando em meio ao importante centro industrial com um grande porto.
Bandeira da Ucrânia tremulando em meio ao importante centro industrial de Mariupol e seu grande e importante porto do Mar de Azov.

Por falar em morte, durante o documentário de Evgeniy Maloletka, as lentes do jornalista e de seus colegas captam em sua maioria vítimas civis, uma vez ou outra é possível escutar relatos de soldados atingidos pelo fogo inimigo durante um confronto, mas nada explícito visualmente. O visual de maior impacto é visto quando eles chegam ao hospital, a estrutura encontra-se em grande parte destruída devido aos ataques covardes dos russos, sem falar na tensão constante quanto a uma invasão russa repentina. A correria dos médicos, enfermeiros e voluntários com o grande fluxo de pessoas feridas e moribundas adentrando ao local, faz deste um verdadeiro caos, ao mesmo tempo que há uma escassez de remédios e equipamentos básicos para se trabalhar. Muitas dessas pessoas que entram pela porta da frente, saem pela porta dos fundos embrulhadas em sacos plásticos e transportadas direto para uma vala comum.

Nada disso é ainda mais bárbaro do que o momento em que um médico leva o documentarista para filmar dentro de uma sala escura – localizada em um lugar inóspito da planta do hospital – em que são depositados os corpos de pessoas mortas, entre elas estão números consideráveis de pequenas trouxas de roupas em que o médico pede atenção constante do cinegrafista – enquanto desembrulha aquele pano sujo – para algo que quando transmitido para o mundo, fará até os mais sádicos dos seres desumanos impactar-se com tamanha crueldade que jaz dentro de um mero pedaço de pano ensanguentado. (por essas breves palavras você já deve ter imaginado o que eu indiretamente quis tentar lhe descrever, o choque ao assistir essa cena é de paralisar e de doer na alma).

A guerra que assolou a Ucrânia transcende para além da fronteira da comunicação, pois quando essas imagens que aparecem neste documentário “20 Dias em Mariupol” são reveladas para o mundo, inicia-se então uma guerra, agora no campo da informação. Difícil saber a verdade por de trás de uma notícia divulgada ou de uma imagem flagrada, muitas são as narrativas utilizadas como armas por ambos os lados, saber o que é fato do que é fake news é uma questão difícil de decifrar, ainda mais em um mundo mergulhado na era da informação em que notícias vem e vão em quantidade e velocidade nunca vistas em guerras passadas, hoje potencializada com as redes sociais e a inteligência artificial.

É terrível só de imaginar que em apenas 20 dias de ataques (e consequente tomada da cidade de Mariupol) foram mais que o suficiente para se ter uma breve noção da destruição – em todos os sentidos da existência – de uma pessoa: tudo que foi conquistado em uma vida de suor pelo trabalho duro, vira um monte de entulho. Planejamentos e sonhos de vida são dissipados em segundos; pais, mães, filhos, amigos e animais de estimação são mortos brutalmente como se nada significassem; corpos dilacerados, traumas e danos à saúde mental são marcas eternas da herança maldita que uma guerra impõem à vida de qualquer ser que respira.

Soldado ucraniano caminha em meio aos descombros de um hospital quer servia como um centro cirúrgico e uma maternidade.
Soldado ucraniano procura sobreviventes entre os escombros de um centro cirúrgico e uma maternidade. Ambas as alas do hospital foram alvos de um grave ataque criminoso (bombardeio) realizado por ocupantes russos.

Penso ao escrever esta resenha crítica como as pessoas que se dedicam a esse tipo de trabalho são corajosas ao deixar o ambiente familiar de paz para se jogar e arriscar a vida em meio à hostilidade impiedosa da guerra para capturar em filmagens e fotos a realidade daqueles que dão o sangue para combater a invasão e, também, das pessoas que estão apenas lutando para sobreviver em meio a bombas, tiros entre outras ameaças mortais.

As imagens mostradas neste documentário são suficientes para causar no espectador a sensação de desconforto e uma comoção descomunal frente a violência acometida contra pessoas inocentes, principalmente sendo elas crianças e até mesmo bebês, recém nascidos. A trilha sonora acrescentada na edição deixa mais intensa a tensão de quem assiste no conforto da sua poltrona toda aquela atmosfera de pavor. A narração em off do diretor deixa o enredo ainda mais apavorante quando contrastada com a sobreposição dos áudios oficiais dos noticiários, somados ainda aos sons amedrontadores dos caças voando em baixa altitude e os “assobios” dos mísseis e das munições traçantes.

Testemunhamos o verdadeiro inferno na terra que é a guerra na Ucrânia (aliás, qualquer que seja a guerra) vista pelas imagens transmitidas pelo documentário “20 Dias em Mariupol”. Abre-se então uma verdadeira porta do inferno, onde muitos que frente estão presenciam o martírio sem estar propriamente em uma causa de fé, pois pessoas lutam para sobreviver à guerra dos homens, sejam elas culpadas ou inocentes. Infelizmente, muitas delas ignoram até os princípios básicos da moral como “não roubar” (exemplo flagrado no documentário, acredite), mesmo em meio às desgraças das provações terrenas, acreditando ou não em céu e inferno após a morte, este último poderá continuar sendo a extensão da vida eterna, acredite ou não. 

Mesmo em momentos de desespero, tenhamos a consciência de que Deus é dono da verdade e enxerga tudo, nada está oculto ou escondido aos olhos Dele, pois além de ser Ele o juiz e guia das nossas ações, recordamos da passagem registrada na Bíblia, em Hebreus 4:13: “E não há criatura oculta à sua presença. Tudo está nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas.”

Inté, se Deus quiser!

 

NOTA: Nota do crítico - 5 estrelas (excelente!)

Trailer

Pôster

Filme "20 Dias em Mariupol" (2023), Mstyslav Chernov.

Curiosidades sobre 20 Dias em Mariupol

  • Inscrição oficial da Ucrânia para a categoria “Melhor Longa-Metragem Internacional” do 96º Oscar em 2024;
  • Como o filme ganhou o Oscar de “Melhor Documentário de Longa-metragem”, o diretor disse em seu discurso de aceitação do Oscar “Eu gostaria de nunca ter feito este filme. Gostaria de poder trocá-lo pela Rússia nunca ter atacado a Ucrânia, nunca ter ocupado nossas cidades”;
  • Este é o documentário de maior bilheteria da história da Ucrânia;
  • Estreou no Festival de Cinema de Sundance de 2023;
  • Mstyslav Chernov ficou muito grato por ganhar o Oscar de “Melhor Documentário”, pois, dois anos após o início da guerra ucraniana, ele sentiu que a urgência de ajudar seu país estava começando a desaparecer devido ao cansaço da guerra. Manter a Ucrânia nas manchetes, seja por meio de uma vitória no Oscar, é fundamental para ajudar a derrotar os russos;
  • Apenas 10% do material mostrado aqui foi transmitido da própria cidade. A eletricidade e as conexões de Internet foram algumas das primeiras vítimas da invasão russa. O restante das imagens foi contrabandeado com sucesso em um comboio da Cruz Vermelha;
  • Exibido no início da 78ª sessão da Assembleia Geral da ONU;
  • Embora tenha ganhado o Oscar de “Melhor Documentário” no Oscar de 2024, o filme também foi apresentado pela Ucrânia para concorrer a “Melhor Filme Internacional”. Não conseguiu entrar na lista final dessa categoria;
  • Este é o segundo documentário consecutivo vencedor do Oscar que não é bem aceito pelas autoridades russas. No ano anterior, o prêmio foi para “Navalny” (2022);
  • Uma fotografia de Evgeniy Maloletka da mulher grávida ferida sendo transportada da maternidade foi premiada como “Foto do Ano pela Imprensa Mundial” em 2023. Seu nome era Iryna Kalinina (32). Seu bebê, chamado Miron (em homenagem à palavra que significa “paz”), nasceu morto, e meia hora depois Iryna também morreu.

Ficha técnica

Diretor: Mstyslav Chernov.
Roteiro: Mstyslav Chernov.
Produtores: Raney Aronson, Mstyslav Chernov, Derl McCrudden, Michelle Mizner, Lindsey Schneider e Vasilisa Stepanenko.
Diretor de fotografia: Mstyslav Chernov.
Editor: Michelle Mizner.
Gerenciamento de Produção: Megan McGough.
Departamento Editorial: Jim Ferguson (colorista / editor on-line), Christine Guordano (editora assistente), Alex LaGore (editor assistente), Tim Meagher (editor assistente), Snizhana Potapchuk (editor adicional (como Snezhana Potapchuk)).
Departamento de Música: Brian McOmber.
Música: Jordan Dykstra.
Elenco: Mstyslav Chernov, Evgeniy Maloletka, Liudmyla Amelkina, Roman Golovanov, Zhanna Homa, Oleksandr Ivanov, Irina Kalinina, Igor Konashenkov, Sergey Lavrov, Ernest Matskyavichyus, Vasiliy Nebenzya, Volodymyr Nikulin, Vladimir Putin, Anastasiya Yerashova e Volodymyr Zelenskyy.

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