Filme "A Outra Face da Guerra" (2019), diretor Dzintars Dreibergs

Resenha do Filme A Outra Face da Guerra (2019, Dzintars Dreibergs)

Ao avistar o pôster/cartaz você verá possivelmente um soldado em meio a um cenário de guerra, em seguida é provável que julgará ser mais um filme épico de guerra, a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918). Surpreso ficará ao enganar-se quando souber que o filme “A Outra Face da Guerra” (Blizzard of Souls, 2019) é uma produção estrangeira, um filme da Letônia.


O soldado protagonista, estampado no cartaz de divulgação do filme letão, é um jovem de 16 anos, Arturs Vanags (Oto Brantevics). Este personagem é inspirado em Aleksandrs Grins, escritor, tradutor e oficial do exército letão, este último ofício é onde ele encontra-se neste filme baseado em seu romance histórico homônimo (título original em letão: Dveselu putenis), escrito sob a pele do escritor. 

Mergulhando de vez nas entranhas de “A Outra Face da Guerra”, a história inicia com o jovem Arturs em pleno campo de batalha, ao lado dos seus companheiros soldados, em meio às árvores, rajadas flamejantes de tiros e explosões de granadas, sob um frio de congelar o bigode e trincar os dentes, tudo isso sobre um chão coberto de neve espessa, sangue e corpos dilacerados.

Dois anos antes da batalha descrita no bloco acima, Arturs e seu irmão, Edgars Vanags (Raimonds Celms), retornam para sua casa, lá encontram os pais e o cachorro. Assim que soldados alemães adentram a área da propriedade da família, Arturs é orientado pela mãe a se esconder debaixo da cama. Em companhia de um soldado, eles entram no cômodo em que o jovem se esconde, o clima de tensão paira até o momento em que, fora da casa, tudo se transforma em tragédia para Arturs.

Os irmãos Vanags sendo recebidos pelo cachorro de estimação na entrada de suas casas.
Os irmãos Vanags sendo recebidos pelo cachorro de estimação na entrada da residência da família.

A atrocidade cometida na família Vanags, após a invasão dos soldados alemães, é o estopim para que o pai, Vanags (Martins Vilsons), o irmão mais velho e o jovem protagonista – mesmo este não tendo a idade mínima para o alistamento – se alistem nos batalhões de fuzileiros da Letônia, que fazia parte do Exército Imperial Russo, para combater o exército do Império Alemão.

O filme letão é uma surpresa digna para os profissionais do cinema dos Estados Bálticos se sentirem orgulhosos, uma vez que Hollywood tem o costume de investir pesado em produções do gênero guerra. São tantos os filmes que exploram o acontecimento histórico da Grande Guerra como cenário para contar as suas histórias (sejam elas fictícias ou verídicas), que basta uma olhada nas prateleiras – ou melhor dizendo – nos catálogos dos streamings para vê-las em suas impactantes capas.

Dzintars Dreibergs, o diretor, em parceria com Valdis Celmins, o diretor de fotografia, conseguem remontar com maestria uma história baseada em um acontecimento factual, testemunhada e registrada através da visão amedrontada de um adolescente envolto pelas atrocidades que uma guerra tem a oferecer, e diante das inúmeras perdas inestimáveis presenciadas pelo personagem principal. 

Mesmo submerso ao clima hostil, violento e impiedoso que a guerra abjeta ser, no roteiro de “A Outra Face da Guerra” é possível sentir um suspiro poético durante um breve cessar-fogo, seja na leitura de uma carta ou nos escassos momentos de confraternização em volta de uma refeição modesta em que é manifesta um lapso de alegria misturado a inocência dos jovens, mesmo tímida.

A humanidade é mostrada também em momentos que se deve decidir por matar ou morrer. O romance aflora na trama em doses homeopáticas, um assunto que com uma dose maior de atenção poderia agregar mais emoção, talvez pelo mote do roteiro o romantismo tenderia mesmo a dissipar em meio ao estresse de uma guerra.

Marta e Arturs Vanags conversando no hospital
Marta (Greta Trusina) estende os panos do hospital enquanto conhece Arturs Vanags (Oto Brantevics)

De volta ao personagem central, a atitude de Arturs o força a acelerar o seu  processo de amadurecimento frente ao cenário impiedoso em que se encontra e que em breve enfrentará. Esse atalho é possível, em boa parte, graças as ordens e ensinamentos do seu pai – este volta à ativa como sargento do pelotão onde o filho faz parte, patente conquistada pela sua trajetória condecorada como sargento-mor.

Como decorrido, “A Outra Face da Guerra” se debruça também a mostrar o amadurecimento precoce de um jovem, que no início do filme apresentava-se ingênuo frente ao cenário em que estava a adentrar, até a transição – e a longo prazo traumática – para um homem que carrega, no terceiro ato, a responsabilidade corajosa de tomar decisões difíceis e liderar um grupo de jovens inexperientes no conflito armado, sendo a luta agora para conquistar a independência de seu país, a Letônia, de sua antiga aliada de guerra, a Rússia.

Arturs Vanags encara uma jornada extrema em que testemunha uma rotina repleta de mortes, passando por ferimentos sérios, mas que em nada será o suficiente para fazê-lo desistir da sua sobrevivência e da luta para a independência da Letônia. O que no começo era um sentimento banal de vingança, se tornará – com o amadurecimento ao longo de sacrifícios – um marco em sua vida que fará muito mais sentido para ele e para a hegemonia da Letônia, sua pátria amada.

O personagem central Arturs Vanags e o seu interprete Oto Brantevics possuem uma característica em comum, ambas são novatos, estreantes em seus ofícios. A estreia não intimida o jovem ator, ele consegue entregar uma interpretação marcante, além de transmitir carisma, atributo que o ajuda na construção da personalidade do seu personagem. O reconhecimento pelo trabalho em “A Outra Face da Guerra” veio com duas indicações: a primeira foi no “Festival Nacional de Cinema da Letônia” e a segunda no festival “WorldFest-Houston“.

Arturs Vanags assustado, se prepara para atacar o inimigo
Em companhia de seu pelotão de fuzilamento, Arturs Vanags (Oto Brantevics) se prepara assustado para atacar o inimigo à frente.

Atrás das câmeras, vale destacar aqui o olhar apurado de Valdis Celmins para os detalhes que compõem o enquadramento do filme, seus planos fechados – em meio ao clima frio e às nevascas constantes – captam a expressão de cada personagem em foco, técnica que resulta em uma impactante cinematografia do diretor de fotografia letão. Cabe também o parênteses ao trabalho realizado na composição da trilha sonora e em sua colocação cirúrgica, intensificando ainda mais a cena.

Você sabe e eu também sei o quanto o gênero guerra se faz presente ontem, hoje e ad aeternum, infelizmente, em um número incontável de produções cinematográficas realizadas por diversos países deste planeta; “A Outra Face da Guerra” é, sem dúvida, um marco não só para o cinema da Letônia, mas também para o cinema báltico.

O filme nos mostra e põe em evidência a participação deste país na Primeira Guerra Mundial e na Guerra da Independência da Letônia; o roteiro reflete em palavras simples e em duras ações a luta enfrentada pela nação letã quanto à sua soberania, ao mesmo tempo faz com que todo cidadão letão lembre que o Estado da Letônia deve sua existência à coragem de veteranos e jovens – estes representados na figura do personagem central, inspirado em uma pessoa de carne, osso, coração e alma.

E para encerrar esta minha resenha crítica de “A Outra Face da Guerra”, evidencio por fim a prece sussurrada por Arturs Vanags no final do filme como uma homenagem aos descendentes e imigrantes letos – muitos destes presentes a quase 80 quilômetros de distância da minha Marília, a cidade de Varpa (distrito do município brasileiro de Tupã, no interior de São Paulo): 

“Aos nossos pais e irmãos… que morreram defendendo a nossa pátria”.

Se você chegou até aqui sem ter assistido ao “produto” denta resenha, recomendo – ao fim desta leitura – que assista.

Inté, se Deus quiser!

NOTA: Nota do crítico - 5 estrelas (excelente!)

 

Um breve resumo até o ‘Dia da Proclamação da República de Letônia’

Os conflitos internos na Rússia Imperial, resultou na queda da monarquia russa pela Revolução de Fevereiro em 1917. A derrocada colocou no poder o Partido Bolchevique, de Vladimir Lênin. A Revolução Russa aconteceu em duas fases distintas: a ‘Revolução de Fevereiro’, executada em março de 1917; desembocando na derradeira ‘Revolução de Outubro’, realizada em novembro de 1917, movimento este que impôs o governo socialista soviético.

Instaurada a Revolução Russa em 1917, no dia 18 de novembro do ano de 1918 a Letônia declarou sua independência, após um período confuso de luta contra a URSS e os bolcheviques da República Socialista Soviética da Letônia (“Guerra da Independência da Letônia”). Findado a guerra, em 11 de agosto de 1920, por meio do “Tratado de Paz Letão-Soviético”, ou o “Tratado de Riga”, o país báltico conquistou o seu reconhecimento como nova nação pela Rússia Soviética e pela Alemanha. Anualmente, no dia 18 de novembro, os letões celebram o “Dia da Proclamação da República de Letónia”.

Trailer

Pôster

Pôster do filme "A Outra Face da Guerra" (2019)

Curiosidades sobre A Outra Face da Guerra

  • O roteiro do filme foi adaptado do livro homônimo de Aleksandrs Grins (1895–1941);
  • Aleksandrs Grins escreveu muitos romances e contos, muitos deles históricos, entre estes “A Outra Face da Guerra” (Blizzard of Souls), publicado em 1934. A maioria de suas obras foram proibidas na União Soviética de 1945 a 1991, inclusive a obra citada aqui;
  • A história foi escrita literalmente nas trincheiras, pois o autor do romance era um fuzileiro letão na Primeira Guerra Mundial;
  • Outras curiosidades sobre o escritor, tradutor e oficial do exército letão, ele foi premiado com a “Ordem das Três Estrelas” (Order of the Three Stars) (classes IV e V) e a “Ordem dos Viesturs” (Order of Viesturs) (classe III);
  • O autor da história, Aleksandrs Grins, representado por Arturs, sobreviveu à Grande Guerra e documentou suas memórias na obra “Blizzard of Souls” (A Outra Face da Guerra). Não demorou muito para surgir a Segunda Guerra, e depois que o Exército Vermelho tomou a Letônia, Aleksandrs Grins foi deportado e fuzilado no dia 25 de dezembro de 1941;
  • A obra literário que inspirou este filme, foi proibida em toda a União Soviética;
  • Valdis Celmins inspirou-se para sua cinematografia no conceito de Christian Berger de evitar planos amplos usando uma lente ampla para planos médios e close-ups, bem como László Nemes em seu filme “O filho de Saul” (2015);
  • É o maior orçamento da história do cinema báltico confiado pelo governo;
  • O ex- ministro da Defesa Raimonds Bergmanis fez uma participação especial no filme, enquanto o então ministro da Defesa Artis Pabriks apareceu como um extra (figurante);
  • Durante as primeiras cinco semanas de exibição, o filme foi visto por mais de 200.000 pessoas, tornando-se o filme mais assistido desde a restauração da independência da Letônia;
  • Oto Brantevics, o ator para o papel principal de Arturs, foi selecionado entre 1.300 candidatos, apesar de Brantevics não ter experiência anterior em atuação;
  • Várias das cenas de batalha foram filmadas nos locais onde as batalhas históricas ocorreram;
  • Inscrição oficial da Letônia para a categoria “Melhor Filme Internacional” do 93º Oscar em 2021;
  • Selecionado para a lista de pré-indicados na categoria “Melhor Trilha Sonora” do 93º Oscar em 2021;
  • Em 2021 a compositora Lolita Ritmanis ganhou o prêmios de “Trilha Sonora Original – Filme Independente (Língua Estrangeira)”nas premiações “Hollywood Music in Media Awards” e “Society of Composers & Lyricists Awards” (Prêmio da Sociedade de Compositores e Letristas);
  • Em 2020 recebeu 10 indicações no “Festival Nacional de Cinema da Letônia” (Lielais Kristaps), ganhou em 6 categorias: ‘Melhor Longa-Metragem de Ficção’ (Inga Praņevska e Dzintars Dreibergs), ‘Melhor Diretor’ (Dzintars Dreibergs), ‘Melhor Fotografia em Longa-Metragem’ (Valdis Celmins), ‘Melhor Maquiagem’ (Dzintra Bijubena), “Melhor Trilha Sonora” (Lolita Ritmanis) e “Melhor Edição” (Gatis Belogrudovs);
  • Também em 2020 o produção foi premiada na categoria “Evento do Ano” no “Kilogram of Culture” (prêmio para a mídia pública no campo da cultura, que confirma a participação ativa da mídia pública nos processos da vida cultural da Letônia);
  • 2020 ainda rendeu mais um prêmio à compositora Lolita Ritmanis, “Melhor Trilha Sonora” no Prêmio Alex North do Festival Internacional de Cinema e Música de Tenerife (“Tenerife International Film Music Festival”);
  • Lolita Ritmanis viera ser nomeada em mais um prêmio, “World Soundtrack Awards” de 2020, na categoria “Prêmio Escolha do Público”;
  • Outras indicações ocorreram em 2020: “Melhor Ator” (Oto Brantevics) no “WorldFest-Houston International Film Festival”; “Melhor Filme Báltico” (Dzintars Dreibergs) no “Tallinn Black Nights Film Festival” (“Festival de Cinema das Noites Negras de Tallinn”); no ‘Festival Internacional de Cinema de Xangai’ (‘Shanghai International Film Festival‘) o diretor Dzintars Dreibergs é mais uma vez indicado, “Prêmio Escolha do Público para Filme” e para finalizar a indicação para a categoria ‘Melhor Fotografia’ (Valdis Celmins) dentro do “IMAGO International Awards for Cinematography”.

Ficha técnica

Diretor: Dzintars Dreibergs.
Roteiro: Boris Frumin e Aleksandrs Grins.
Produtores: Dzintars Dreibergs e Inga Pranevska.
Diretor de fotografia: Valdis Celmins.
Editor: Gatis Belogrudovs.
Design de produção: Juris Zhukovskis.
Figurino: Sandra Sila.
Cabelo e maquiagem: Dzintra Bijubene, Alina Blinkova, Una Ozola, Aija Beata Rjabovska, Santa Sandule e Ieva Sebre.
Música: Lolita Ritmanis.
Elenco principal: Oto Brantevics, Greta Trusina, Martins Vilsons, Rezija Kalnina, Raimonds Celms, Jekabs Reinis, Gatis Gaga, Renars Zeltins, Vilis Daudzins, Ieva Florence, Natalija Buha, Evita Goze, Ziedonis Lochmelis, Sandis Pecis, Martins Liepa, Juris Lavins, Ivars Brakovskis, Juris Gornavs, Martins Pocs, Leonarda Kestere-Klavina, Pjotrs Karpuhins, Lauma Balode, Snezana Guzja, Oskars Holsteins, Leonarda Kestere Klavina, Girts Krumins, Inese Kucinska Lauksteine, Toms Liepajnieks, Ziedonis Locmelis, Nils Namsons, Edmunds Rags e Edgars Sietinsons.

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